Marina Marcondes Machado (2002, p.261) acredita que o registro do processo de criação no diário de bordo precede a reflexão do acontecido. Essa característica, que antecipa uma certa tendência que temos de racionalizar tudo na busca por estruturas inteligíveis, vem como um para-raios de ímpetos criativos, de imagens e sentimentos que habitam nossas profundezas, de uma certa intuição que temos e que se transmuta em formas que nos orbitam e se inscrevem em nossos corpos, mas que não facilmente conseguimos capturar.
Lembro de uma vez que confessei a um professor que tinha muitas inquietações, mas que não conseguia verbalizá-las para assim formatar temáticas mais definidas para os meus trabalhos. Ele me aconselhou a deixar meu corpo e meus interesses fazerem emergir isso, porque no fundo eu sabia o que queria dizer só que ainda não conseguia expressar pelos meios tradicionais. A escrita criativa, a verbalização de sensações, a catalogação de imagens, a tentativa de explicação de nossas experiências, a transformação em discurso de algo imaterial constrói mapas tanto para chegarmos em lugares nunca acessados, quanto para conseguirmos retornar aos mesmos lugares que já fomos ou indicarmos o caminho para as viagens de outros.
Lucas Larscher (2019, p.106) coloca que o diário de bordo faz emergir a subjetividade de quem o cria, funcionando para o artista-autor enquanto prática de “exposição do seu eu”, um espaço de diálogo entre criador e criação. O autor também fala do diário de bordo como um lugar em que se deslocam os signos de uma determinada conformação estética para outra, confluindo assim em dois discursos simultâneos.
É nessa dialética que adentramos no conceito de palestra-performance (PRÓXIMO POST), que vem, então, como uma ponte, uma possibilidade de coexistência do caminho e do resultado, colocando no palco o que está só rascunhado nos diários ou até mesmo ainda preso dentro de nós. Essa passagem do diário para a cena pode se tornar uma estratégia de criação que acaba por dissipar traços puramente autobiográficos, se convertendo em colagens, sobreposições e deslocamentos.
LARCHER, Lucas. O diário de bordo e suas potencialidades pedagógicas. ouvirOUver, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 100–111, 2019. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/42646 . Acesso em: 10 jul. 2023.
LEITE, Janaína. Autoescrituras performativas: do diário à cena. Universidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo, 2014. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-27022015-160605/pt-br.php Acesso em 26 mai. 2023.
MACHADO, Marina Marcondes. O diário de bordo como ferramenta fenomenológica para o pesquisador em artes cênicas. Sala Preta, [S. l.], v. 2, p. 260-263, 2002. DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v2i0p260-263. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57101/60089 Acesso em: 15 mai. 2023.
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